O dilema da criação de filhos no Brasil: a ética compensa? Pais temem ensinar virtudes às crianças e torná-las presas fáceis em um país onde o dever e a verdade parecem vencidos pela mania de levar vantagem. É um velho dilema. Filósofos gregos já se faziam a pergunta há mais de vinte séculos: uns defendiam que fazer o que é correto, o que deve ser feito, é o caminho para a felicidade; outros argumentavam que tal conciliação é impossível.
"Jesus disse: ou você serve a DEUS, ou a Mamon..." |
O dilema vive no Brasil hoje. E
se acirrou há poucas semanas com a publicação do artigo
do economista Gustavo Ioschpe, colunista de VEJA, intitulado "Devo
educar meus filhos para serem éticos?" Ioschpe revelou a apreensão de
criar filhos em uma nação às voltas com problemas éticos de estaturas variadas
— da ausência de pontualidade para compromissos à ausência de honestidade para
governar. A certa altura, ele apresentou assim seu dilema: "Será que o
melhor que poderia fazer para preparar meus filhos para viver no Brasil seria
não aprisioná-los na cela da consciência, do diálogo consigo mesmos, da
preocupação com a integridade?" Foi a senha para que milhares de leitores
se manifestassem, compartilhando apreensão idêntica.
Mais de 30.000 pessoas
recomendaram o texto, reproduzido em VEJA.com, utilizando recurso do Facebook;
centenas deixaram comentários ao artigo e espalharam as ideias contidas nele
pela internet. Muitos aproveitaram a ocasião para contar suas histórias, seus
dilemas. É o caso de Márcia Costa e dos demais pais ouvidos nesta reportagem.
"Temos que criar nossos filhos para serem do bem ou para se darem bem? A
preocupação é o quão inocente nossos filhos vão ser se forem educados para
serem do bem", diz a tradutora Samira Regina Favaro Gris. A médica Denise
Zeoti acrescenta: "A ideia de passar valores para minha filha e torná-la
uma presa fácil me assusta. Quero que ela seja uma pessoa ética, correta, mas
não quero que ela seja passada para trás."
Do ponto de vista filosófico,
ética é um conjunto de valores e princípios que define os limites de ação de
cada ser humano. "Esse conjunto nos orienta em três questões fundamentais,
intrinsicamente ligadas à nossa liberdade individual: Quero? Posso? Devo? Minha
resposta depende dos princípios éticos que adoto", diz o filósofo Mario
Sergio Cortella. É uma questão simples de compreender quando aplicada à
prática. De maneira geral, queremos muitas coisas: em alguns casos, podemos até
obtê-las (ou realizá-las), mas, em outros, não devemos alcançá-las. Pode ser o
caso de parar o carro em fila dupla na porta da escola dos filhos; pode ser o caso
de desviar dinheiro dos cofres públicos. Pessoas eticamente saudáveis,
prossegue a filosofia, são aquelas que podem, mas não fazem o que é errado.
Quando se trata de ética,
portanto, há sempre um choque entre princípios e ações individuais e coletivos.
Seria mais correto, aliás, falar em éticas — no plural. Cortella tem um
inusitado exemplo para explicar como elas se chocam, e como, no convívio
social, a ética se impõe aos interesses individuais. É a análise do caso de uma
casca de banana atirada ao chão. "Quem a atirou ali propositalmente seguiu
a ética tola, egoísta. Quem viu a casca, mas não a retirou, agiu segundo a
ética da omissão. Finalmente, quem jogou a casca no lixo seguiu a ética da vida
coletiva."
Criar filhos no Brasil demanda
preocupação extra por causa dos tipos de ética que se chocam no ambiente
público. Afinal, como convencer os filhos de que é preciso falar sempre a
verdade quando um deputado
federal preso por desvio de dinheiro público é absolvido por seu
pares, que asseguram a ele o mandato de representante do povo? "Uma
sociedade em que os poderosos não são presos, em que nem todos são iguais
perante a lei, vive uma contradição ética. Em público você quer parecer
igualitário, mas por baixo dos panos, para seus parentes, você usa a ética da
desigualdade", diz o antropólogo Roberto Da Matta.
PT, que era o "diferente", provou ser PIOR que os outros partidos |
A ética — a da igualdade — pode
ser o caminho mais longo e árduo para os brasileiros, em geral, e para os pais,
em particular, rumo à felicidade. Mas é, segundo filósofo Cortella, certamente
o único. "Não é possível ser feliz quando não se tem paz de consciência.
Quem age de acordo com a conveniência do momento, prega uma ideia e aplica outra,
não terá essa paz. Esse sofre de esquizofrenia ética", diz. "Agir de
acordo com o que consideramos correto é o que traz paz de espírito." No
artigo que levantou a discussão, Gustavo Ioschpe, logo após apresentar seu
dilema, concluiu que deixar de transmistir a seus filhos um legado ético era
uma decisão insustentável. O norte é mesmo a ética.
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